As mudanças climáticas têm tornado o ambiente urbano vulnerável à malária, doença que historicamente se restringia às zonas florestais. O risco está associado ao vetor Anopheles stephensi, originário da Ásia, e identificado como espécie invasora pela primeira vez em 2012, em Djibuti, no continente africano. Segundo a pesquisa, atualmente ele foi detectado em cerca de 14 países, com uma rápida expansão.
Semelhanças climáticas entre as regiões afetadas e o Brasil demonstram que o país pode ser afetado, segundo um estudo da Faculdade de Saúde Pública (FSP) e do Grupo de Estudos em Saúde Planetária Brasil (SPBr) do Instituto de Estudos Avançados (IEA), ambos da USP.
Equiparável ao Aedes aegypti (vetor de dengue, zika, chikungunya) em termos de seleção de hábitat e reprodução, o Anopheles stephensi deposita seus ovos em recipientes com acúmulo de água, como pneus e caixas d’água. A sua disseminação ocorre principalmente através de duas vias: ativamente, por meio do transporte de cargas em navios, e passivamente, através de fluxos de vento.
O artigo, recém-publicado pela revista Scientific Reports, reforça a vulnerabilidade do Brasil, que se encontra na rota potencial de introdução do mosquito, graças ao comércio com países em que o vetor está presente. O cenário preocupa, principalmente, porque os portos nacionais estão associados a grandes centros urbanos.
Segundo André Luís Acosta, coordenador do grupo de estudos SPBr e um dos autores do trabalho, o transporte marítimo desempenha papel central na disseminação do Anopheles stephensi. Durante o processo de coleta e entrega de mercadorias entre portos, ovos e mosquitos adultos podem ser levados juntos, facilitando a chegada do vetor a novas localidades.
“Quando esse navio [de mercadorias] descarrega no outro porto pode levar até mesmo mosquitos adultos, porque alguns eclodem durante a viagem”, explica Acosta. O pesquisador, que estuda malária na Amazônia, conta ter voltado sua atenção ao tema em 2023, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma iniciativa para conter a propagação do vetor no continente africano.
O mosquito é o vetor responsável pela transmissão do protozoário Plasmodium, causador da malária, uma doença grave que pode levar à morte se não for diagnosticada e tratada rapidamente. A infecção ocorre por meio da picada de fêmeas infectadas dos gêneros Anopheles. No Brasil, o vetor principal é Anopheles darlingi, presente, principalmente, em zonas florestais.
O ciclo de transmissão da malária começa quando o mosquito pica uma pessoa já infectada e ingere os parasitas causadores da doença. A partir disso, ele se torna capaz de transmitir a doença ao picar outras pessoas, inocular os microrganismos no sangue delas e completando o ciclo de infecção.
O Anopheles stephensi foi identificado como espécie invasora pela primeira vez em 2012, em Djibuti , na África, e tem rápida expansão. No Brasil, a ampla distribuição do Aedes aegypti demonstra como mosquitos adaptados a ambientes urbanos podem ocupar o território. O pesquisador aponta ser essencial que os órgãos de vigilância reforcem o monitoramento entomológico, sobretudo nos portos, para identificação precoce do Anopheles stephensi, reduzindo o risco de sua introdução no Brasil.
Para ele, com a possível introdução de mais esse vetor, a transmissão poderá ocorrer também em áreas rurais e urbanas, ampliando o alcance da doença – o que representa um risco de crise em saúde pública.
Na zona saheliana do Mali foi observada também sua capacidade de se expandir através de fluxos do vento, embora esse método ocorra após a invasão do vetor no continente. Segundo o pesquisador, caso o vetor chegue ao Brasil, há risco de que os ventos marítimos facilitem o transporte de áreas portuárias para urbanas, como de Santos a São Paulo.
“A detecção do mosquito antes de algum processo de transmissão de malária é o mais importante para conseguirmos monitorar e controlar a entrada do vetor, e com isso reduzir o risco de urbanização da malária. E não temos nenhuma ideia se ele já chegou ou não [ao Brasil], inclusive. Porque não temos esse tipo de coleta sistemática em portos visando a detectar o vetor” – André Luís Acosta
A pesquisa é baseada em modelagem de cenários. Seu período de referência, ou baseline, contém dados de 1970 a 2010 e projeta cenários futuros entre 2021 e 2100. Após as avaliações, foi constatado que 40% da população global está em áreas com aptidão climática para o mosquito, e que até 2100 esses números podem chegar a 56%.
A aptidão climática é medida a partir da investigação de múltiplas camadas climáticas em escala global, que combinam fatores relacionados à temperatura e precipitação. Segundo Acosta, a abordagem permite identificar e mapear padrões climáticos similares entre os países em que o mosquito está presente e áreas não invadidas.
Os efeitos das mudanças climáticas foram um ponto-chave para as previsões do estudo. Neste caso, foram consideradas as projeções climáticas da mais recente campanha de modelos climáticos CMIP6 – que padroniza os processos para a geração de cenários futuros de modelos climáticos –, divididas a cada 20 anos até 2100.
Para a pesquisa foram utilizados oito algoritmos para avaliar e traduzir os dados a partir de diferentes lógicas de modelagem. Também foram incorporados modelos climáticos de três instituições de pesquisa de referência, que projetam cenários de mudanças climáticas para períodos futuros (GCM- Global Circulation Models). Elas foram escolhidas com base na frequência de citação no Scopus, um banco de dados acadêmico.
“Geramos projeções futuras com uso de três fontes distintas e muito confiáveis de GCMs. As variáveis destas três fontes não são idênticas quanto às projeções de mudanças climáticas para o futuro; por consequência, os modelos de adequabilidade para o vetor também geram resultados diferentes, ao considerarmos as convergências em comum entre as três fontes distintas aumentamos a precisão das estimativas finais”, explica o pesquisador.
A partir disso, foi formado o Ensemble Forecast Model, que aumenta a confiabilidade das previsões e gera mapas para subsidiar decisões estratégicas em saúde pública.
Segundo Acosta, algumas espécies, como os mosquitos vetores de doenças, se beneficiam das mudanças climáticas com aumento da aptidão e expansão de seus hábitats. Assim, a capacidade de transmissão de doenças, como a malária, também cresce e passa a atingir mais pessoas.
“Se o clima é parecido, o risco já é muito grande, porque o principal limitante inicial para as espécies invasoras se expandirem após introduzidas é o clima. Se essa barreira desaparece e existe hábitat disponível – como latinhas jogadas acumulando água, e tudo aquilo que os mosquitos Aedes aegypti já usam nas cidades para sobreviverem – o risco deste novo vetor ser introduzido é muito grande, é absurdo”, destaca o pesquisador.
Acosta diz que a prevenção passa pela divulgação dessas informações. Os pesquisadores têm buscado conscientizar a população sobre os perigos da chegada do vetor, com a campanha Malária Global .
Segundo ele, não há medidas dos órgãos públicos para a detecção do vetor no território brasileiro. “Não existe nenhum controle de vigilância ou de monitoramento que busque encontrar esse mosquito em portos. Este é o nosso principal motivo para alertar a necessidade de levantamentos sistemáticos em campo”, reforça.
Em relação à atuação da população, as únicas medidas possíveis são as mesmas que já devem ser feitas para a prevenção e controle contra o Aedes aegypti, ou seja, evitar o foco de água parada.
O trabalho completo pode ser acessado neste link .
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