O transtorno depressivo maior – conhecido como depressão clínica – atinge mais de 300 milhões de pessoas e resulta de uma interação complexa entre fatores genéticos, sociais, biológicos, e psíquicos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). “Várias hipóteses tentam explicar a depressão: a neurotransmissão, a deficiência de monoaminas [tipos de neurotransmissores], a hereditariedade, a deficiência do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal [na produção de hormônios] e a questão social”, explica Roseane Nava, farmacêutica e doutoranda do Programa Interunidades de Bioinformática da USP.
Nos últimos anos, a doença tem sido vista sob uma nova lente: a da neuroinflamação. Pesquisas indicam que redes de citocinas (proteínas “mensageiras” do sistema imunológico) desreguladas influenciam no desenvolvimento e na persistência dos sintomas depressivos. Além de uma suposta ação dos antidepressivos sobre os neurotransmissores – que ainda não está muito bem elucidada – eles também têm o potencial de modular o sistema imunológico, reduzindo marcadores pró-inflamatórios e estimulando citocinas anti-inflamatórias.
Pesquisadores da USP realizaram uma revisão de literatura a fim de explorar essa relação e avaliar a eficácia de intervenções emergentes. Para Roseane Nava, há uma lacuna entre os achados da neurofarmacologia e a prática da psiquiatria clínica. “A ciência ainda não entende como os sintomas psicossociais estão envolvidos na parte neurológica, onde os antidepressivos agem”, comenta. Agora sua tese investiga padrões de citocinas a partir da análise do RNA de pacientes antes e depois da administração de medicamentos.
Otávio Cabral Marques, professor de medicina molecular na Faculdade de Medicina (FM) da USP, é um dos líderes do Laboratório de Psiconeuroimunologia (selye Lab). “O sistema nervoso sempre foi tratado como uma entidade isolada dos outros sistemas, mas ele faz parte de uma tríade com o sistema imunológico e o sistema endócrino”, afirma ao Jornal da USP.
Ele observa que, ao longo da história, a divisão do conhecimento em “setores” limitou a compreensão dos cientistas. “Cada pesquisador enxerga um pedaço e acha que detém a verdade, mas isso os impede de ver o organismo como um todo”, aponta. O Selye Lab busca compreender os mecanismos de funcionamento do corpo humano de forma horizontal. O entendimento da depressão, segundo o professor, demanda uma visão transdisciplinar da ciência, que rompa barreiras entre os campos do saber.
Mas o que é, afinal, a neuroinflamação? Otávio Marques explica que ela surge como um mecanismo de adaptação do sistema nervoso em situações de estresse. “O sistema imunológico não só combate infecções, ele tem papel de homeostase – trazer de volta ao equilíbrio algo que saiu dos eixos.”
Esse processo de desregulação estimula o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) a liberar cortisol (hormônio anti-inflamatório). Porém, quando a inflamação se torna crônica, o organismo passa a resistir ao cortisol e perde a capacidade de resposta, danificando regiões cerebrais que regulam o humor. “Isso diminui a disponibilidade de monoaminas nas fendas sinápticas e acarreta sintomas depressivos”, comenta Roseane Nava. “Quando o paciente não recebe tratamento, o que era para trazer equilíbrio perde o controle.”
Segundo a pesquisadora, os antidepressivos tricíclicos (que inibem a recaptação de serotonina e norepinefrina) têm efeitos em dores periféricas e no sistema imunológico. “Estudos mostram que os neurotransmissores não agem só no cérebro, mas também em células imunes do sistema nervoso periférico (SNP)”, explica.
E a conversa é recíproca: assim como o sistema imune tem receptores para neurotransmissores, o sistema nervoso central (SNC) tem receptores para citocinas, as proteínas da inflamação. “A incidência de depressão em pacientes com doenças autoimunes é alta, principalmente infecções como hepatite, que usam medicamentos interferons”, exemplifica Otávio Marques. O interferon combate a inflamação, mas pode culminar na imunossupressão e no surgimento de sintomas como sensação de perda de interesse e falta de apetite.
Embora os antidepressivos possuam efeito no sistema imune, sua ação pode ser tardia ou insuficiente para neutralizar a inflamação. Isso ajuda a explicar por que parte dos pacientes – em especial aqueles com alguma disfunção anterior – desenvolve resistência ao tratamento. “Muitos não respondem à primeira linha porque os vários fatores envolvidos na depressão exigem intervenções complementares”, comenta Roseane Nava.
Pesquisas apontam, por exemplo, para a terapia com interleucina-2 (IL-2) em baixas doses, já utilizada para tratar o lúpus. Ela induz a célula T reguladora a frear inflamações exageradas. “Pacientes com autoimunidade apresentam melhora na doença, e agora essa modulação imunológica tem sido pensada como parte do tratamento da depressão”, explica Otávio Marques.
O nervo vago, por sua vez, é o mais longo dos nervos cranianos e conecta o sistema central ao periférico, regulando batimentos cardíacos, respiração e digestão. Roseane Nava explica que essa “ponte” pode aumentar as células do sistema imunológico e potencializar a inflamação. Por isso, uma opção de tratamento é a estimulação do nervo vago, que utiliza um dispositivo implantado cirurgicamente para enviar impulsos elétricos e regular a atividade cerebral.
Hábitos de vida interferem diretamente no curso da depressão, e prestar atenção aos aspectos comportamentais do paciente é essencial. A atividade física, por exemplo, aumenta a produção de citocinas anti-inflamatórias e ajuda na regulação de doenças cardiovasculares e psiquiátricas.
Já a alimentação afeta o eixo intestino-cérebro: o intestino é frequentemente apelidado de “segundo cérebro” devido à relação intrínseca entre a microbiota local e o sistema nervoso. A depressão pode causar disbiose – redução de bactérias benéficas no intestino, o que leva ao aumento de citocinas pró-inflamatórias. “O papel anti-inflamatório de alguns alimentos e probióticos pode regular o intestino, diminuir a inflamação e diminuir os sintomas depressivos”, diz Roseane Nava.
“Precisamos tratar todas as questões da vida do paciente, não só a neurológica, mas a imunológica e a psicossocial – que inclui atividade física, alimentação e cultura, assim como a integração com outras doenças”, completa.
Identificar biomarcadores para a depressão representa uma “virada de chave” na psiquiatria, pois abre caminho para diagnósticos mais precisos. “Estudos mostram que certos genes podem predispor à resistência de pacientes a determinados tratamentos”, aponta a cientista. Seu objetivo é construir um amplo painel imunológico: as citocinas inflamatórias ajudariam no manejo personalizado da doença, enquanto citocinas anti-inflamatórias seriam utilizadas para monitorar a resposta ao tratamento com mais eficiência.
Otávio Marques ressalta que doenças com manifestações físicas mais claras têm protocolos de atestado médico bem estabelecidos, mas a depressão ainda enfrenta estigmas. “A sociedade está despreparada [para essa discussão], mas a mente interage diretamente com o corpo, e vários processos fisiológicos são desregulados num quadro depressivo”, diz. Para o professor, alterações moleculares podem ser uma maneira de comprovar que um paciente precisa de cuidados ou de ser afastado de suas atividades.
O estudo procura desmistificar estereótipos em torno da depressão e enxergar o corpo humano como um organismo interconectado, que vai muito além do aspecto funcional. O grupo também defende maior humanização do processo de atendimento clínico. “A psicoterapia muitas vezes faz bem não por causa da técnica do psicoterapeuta, mas pelo afeto com que ele olha para a pessoa”, conclui Otávio Marques.
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