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Museu de Arte Contemporânea da USP recebe exposição de Di Cavalcanti
Mostra exibe 115 desenhos do artista modernista pertencentes ao acervo do museu
11/11/2025 07h56
Por: Redação Fonte: Secom SP

Dos prostíbulos de Paris a uma breve fase cristã, a exposição Di Cavalcanti: Militante, Boêmio e Brasileiro vai expor as diferentes facetas do artista que ficou conhecido por sua atuação na Semana de Arte Moderna de 1922 e pelos polêmicos quadros de mulheres negras. A mostra foi inaugurada no sábado (8), no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, e ficará em cartaz até outubro de 2026. A entrada é grátis.

A mostra tem curadoria da professora Helouise Costa, do MAC, e do jornalista Marcelo Bortoloti. Ela foi elaborada a partir da pesquisa de pós-doutorado de Bortoloti, supervisionada por Costa. O MAC tem uma coleção de 561 desenhos de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), escolhidos e doados pelo próprio artista ao acervo do antigo Museu de Arte Moderna (MAM), nos anos 1950. Desses, 115 serão expostos, mas a coleção completa será exibida no local através de uma projeção audiovisual.

A exposição conta com uma detalhada linha do tempo e passa por todas as fases da carreira artística de Di Cavalcanti. É dividida em seis módulos, que representam as seis décadas de produção em sua vida. Sobre esses núcleos, a curadora diz: “São chaves que consideramos importantes e que marcaram as diferentes décadas do trabalho de Di Cavalcanti. Foi a partir delas que selecionamos as obras, a partir desses temas e datas.”

Di Cavalcanti, Sem título, 1927. Foto: Divulgação/MAC

“Percebemos que fazer uma releitura dessa coleção, a partir da biografia do artista, lançava luz sobre outros aspectos que ainda não haviam sido estudados”, acrescenta Helouise Costa. “A exposição é resultado da pesquisa realizada no museu.”

Ao adentrar a exposição, o visitante se depara com uma longa parede à direita, que contém a história do artista, desde o nascimento em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. A linha do tempo acompanha as salas abertas, posicionadas à esquerda do espaço expositivo, cada uma dedicada a um módulo. Em todas as salas, duas paredes abrigam as obras de Di Cavalcanti e uma traz obras de outros artistas, relacionados a ele de diferentes formas, a depender do núcleo.

Entre os múltiplos aspectos que circundam o polêmico artista, a curadoria destacou três: brasileiro, boêmio e militante. “Existe uma construção da ideia de brasilidade no trabalho do Di Cavalcanti. A defesa de uma identidade especificamente brasileira perpassa todo o seu trabalho”, afirma Costa. A mostra busca rever a obra gráfica do artista com base em sua trajetória de vida e questionamentos contemporâneos sobre o Modernismo.

Di Cavalcanti, Sem Título, 1941 – Foto: Divulgação/MAC

Paris

No primeiro módulo são apresentadas as obras produzidas durante a primeira estadia de Di Cavalcanti em Paris. O artista se mudou para a capital francesa em 1923, como correspondente do jornal Correio da Manhã. Lá, ele viveu uma vida boêmia, inserido na cultura dos cafés, prostíbulos e vida noturna. Sua produção artística da época reflete a vida dionisíaca que experimentava. Retornou ao Brasil em 1925, trazendo inspirações e referências europeias, como George Braque.

“O intercâmbio com a França é muito nítido na obra de Di Cavalcanti”, informa Marcelo Bortoloti. “Ele, ao mesmo tempo, é um representante do Brasil e ajuda a entender como a arte brasileira foi ‘costurada’, com diálogos e percalços da história.”

Di Cavalcanti, Sem título, 1933

Artista engajado

A atuação de Di Cavalcante como militante político é menos difundida no imaginário brasileiro, mas ela marcou sua história, como explica Bortoloti. Ele sempre foi diferente dos seus colegas da Semana de 1922, que podiam ser artistas sem se preocupar com o aspecto financeiro. Enquanto alguns deles eram herdeiros de fazendas de café, Di tinha nascido em um contexto suburbano e trabalhou como jornalista desde cedo para se sustentar. Essa situação o fez adotar uma postura de consciência de classe.

Nessa fase, participou de greves e eventos sindicais. Chegou a ser preso três vezes por sua militância política. As temáticas que representava nos desenhos – alguns feitos dentro da cadeia – eram as relacionadas ao operariado. “Ele era ligado ao Partido Comunista nas décadas de 20 e 30", lembra Bortoloti. “Foi o primeiro modernista da Semana que se interessou por política e que começou a representar e a denunciar as injustiças sociais.”

“Por ser uma figura vinda de uma classe mais baixa, que passou a infância em São Cristóvão, ele teve um convívio com o povo de maneira mais horizontal”, continua o jornalista. “Essa pode ser uma particularidade dele em relação aos outros modernistas.”

Desenhos selecionados para a mostra no MAC têm temáticas como a “venda” do Brasil para o capital estrangeiro. Charges satíricas e desenhos críticos eram comuns nessa fase da carreira do artista. “Olhar para a extensão da obra dele nos ajuda a compreender muitos aspectos da cultura brasileira, inclusive da realidade política, durante décadas.”

Di Cavalcanti, “Lima Barreto”, 1952. Foto: Divulgação/MAC

Criações compartilhadas

Di retornou a Paris em 1936, dessa vez com Noêmia Mourão, sua companheira, fugindo da repressão sofrida durante a era Vargas, após saírem da prisão. Nessa época, ele conheceu Pablo Picasso, Henri Matisse e outros grandes nomes da arte na Europa. As relações que travou com esses artistas também são abordadas numa projeção audiovisual instalada na exposição.

A troca constante entre Di Cavalcanti e Noêmia, que se conheceram quando ele, 14 anos mais velho, era o professor e ela, sua aluna, pode ser observada nas produções do artista num dos módulos da mostra. O artista adquire um traço mais feminino, muito similar ao de Noêmia, que tem suas obras expostas na terceira parede da sala. A artista floresceu na capital francesa e seu trabalho foi essencial para a vida financeira do casal na época. Apesar disso e da sua maturidade artística, após voltarem ao Brasil, enquanto Di foi cada vez mais valorizado pelo mercado de arte, Noêmia, pertencente à mesma geração de mulheres modernistas que Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, foi esquecida pela história.

Di Cavalcanti, “1º de Maio”, 1932 – Foto: Divulgação/MAC

Fuga da guerra

Quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu na Europa e os nazistas invadiram a França, em 1940, Di retornou ao Brasil desiludido com a luta política, o que o aproximou da religião. Nessa fase, os desenhos refletem seu curto período de religiosidade, com a representação de padres, igrejas e outros símbolos cristãos. “É um momento de decepção com todo o ideal em que ele acredita, com uma transformação social que não se concretiza”, aponta a professora Helouise Costa.

Representações dos afro-brasileiros

O mais sensível dos núcleos da exposição é o que contém desenhos com temas afro-brasileiros, que, embora talvez produzidos com boa intenção, “envelheceram mal”, como diz Costa. “Num primeiro momento, numa época de ideologia racista de pureza da raça defendida pelos regimes totalitários fascistas, sua obra é de valorização de um Brasil diversificado, mas que se transforma em um estereótipo”, diz Costa. “Ele ficou conhecido como pintor das mulatas, sendo que, hoje, mulata é um termo pejorativo.”

Bortoloti completa: “Ainda que, na época, ele tenha sido bem-intencionado e tenha tido vontade, de fato, de representar o Brasil, essa visão ficou anacrônica hoje”.

Sobre o modo de representação feminino, também criticado atualmente, Helouise Costa reconhece: “Ele coloca a mulher muitas vezes num papel passivo, de objeto do olhar masculino. Tentamos problematizar isso.” Na mostra estão expostas fotografias de mulheres que posaram para Di Cavalcanti, feitas por Walter Firmo. Bortoloti obteve depoimentos delas e até obteve recibos dos pagamentos que Di fazia para as modelos. “Ele transformou a vida de muitas delas. Nomear essas mulheres é uma ação afirmativa”, diz Costa.

Di Cavalcanti, “Barbusse, 1935 – Foto: Divulgação/MAC

O artista figurativo

O último módulo da exposição é sobre a última fase da produção de Di Cavalcanti, em que o artista adquiriu uma posição conservadora em relação às inovações artísticas e, especificamente, ao abstracionismo. São expostos, sobre uma mesa, recortes das suas críticas em jornais, atacando artistas abstracionistas.

Além de sua produção dessa época, esse núcleo inclui obras dos artistas por ele criticados. Esse período explicita uma das contradições na história do artista, considerando que foi um dos modernistas responsáveis pela Semana de 1922, mas a partir de certo ponto repudiou novas vanguardas. “Ele se dizia um sujeito livre, sem compromisso nem com as próprias ideias, o que explica essas oscilações”, justifica Bortoloti.

A exposição Di Cavalcanti: Militante, Boêmio e Brasileiro foi inaugurada no sábado (8) e ficará em cartaz até 18 de outubro de 2026, de terça-feira a domingo, das 10 às 21h, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 2648-0254 e no site do MAC .

Di Cavalcanti, “Le Corbusier”, 1923. Foto: Divulgação MAC